Da Inconstitucionalidade do Decreto nº 9.685/2019 (Armas de Fogo)
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Por Carlos Eduardo Rios do Amaral
É lição comezinha em Direito a de que compete privativamente à União legislar sobre matéria civil, comercial, penal e material bélico, abrangendo aí questão acerca do registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição no País.
Noutras palavras, de acordo com a Constituição Federal (Art. 22, I e XXI) a espécie normativa apta a regulamentar os casos de registro, posse e comercialização de armas de fogo no Brasil é a lei em sentido estrito, aprovada pelo Congresso Nacional e posteriormente sancionada pelo Presidente da República.
Não poderá a questão do registro e posse de armas de fogo ser objeto de Medida Provisória por força da vedação expressa constante no Art. 62, §1º, I, “b”, da Constituição, por constituir concomitantemente matéria penal referente aos casos de exclusão de ilicitude ou atipicidade de conduta.
A par deste entendimento sedimentado no texto da Constituição, sabe-se que Decretos do Poder Executivo nada mais são do que regras jurídicas gerais editadas em função de uma lei, possibilitando a sua fiel execução. Nosso sistema constitucional vigente não confere, assim, ao Poder Executivo a prerrogativa de editar Decretos como atos primários, diretamente derivados da Constituição.
Pois bem. A Lei Federal 10.826/2003, em seu Art. 4º, caput, confere à Autoridade Pública competente o poder de avaliar o critério da “efetiva necessidade” para aquisição de arma de fogo pelo cidadão – critério subjetivo –, atendendo-se ainda a critérios objetivos estabelecidos neste Diploma legal. Aqui não se confunda critério subjetivo com discricionariedade da Administração Pública. No primeiro caso, restará sempre ao cidadão o enfrentamento judicial dos termos da recusa administrativa.
O Art. 4º da Lei Federal 10.826/2003 não prevê hipótese de regulamentação da matéria pelo Poder Executivo – e nem poderia em razão da competência legislativa privativa da União – de modo a condicionar ou vincular a Autoridade Pública no que diz respeito à verificação do critério subjetivo da “efetiva necessidade” para aquisição de arma de fogo.
Por exemplo, permite o Art. 4º da Lei Federal 10.826/2003 que sob um critério subjetivo a Autoridade Pública recuse a aquisição de arma de fogo a determinado cidadão, que a pretexto de “defender o lar”, tenha contra si meia dúzia de medidas protetivas por violência doméstica, todas arquivadas a pedido da esposa. Igualmente, a Autoridade Pública pode recusar o registro de arma de fogo a determinado genitor demandado em ação cível de destituição do poder familiar sob alegação de violência sexual contra filha-menor, quando não suspenso o direito de visitação, independentemente da instauração de ação penal. Em ambos os casos ressalvando-se ao cidadão o direito de acesso ao Poder Judiciário para questionar a recusa administrativa.
Bem ou mal, assim dispõe o Art. 4º da Lei Federal 10.826/2003. O Congresso Nacional, através de suas duas Casas Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, elegeram o critério subjetivo da “efetiva necessidade”, como requisito para aquisição de arma de fogo pelo cidadão. Poderia o legislador federal optar tão-somente por um rol objetivo. Mas não o fez. Agora, um Decreto do Senhor Presidente da República não pode modificar – ou remediar, como queriam – a lei vigente.
Destarte, o Decreto nº 9.685/2019 (Art. 1º) quando retira da Autoridade Pública competente a avaliação do critério subjetivo da “efetiva necessidade”, como requisito para aquisição de arma de fogo pelo cidadão, elegendo por ato isolado do Presidente da República, unicamente, requisitos objetivos a vincular obrigatoriamente o Agente Público, padece do vício de inconstitucionalidade formal, por invadir matéria legislativa de competência privativa da União Federal (Art. 22, I e XXI), via lei ordinária.
O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, já decidiu a respeito da competência legislativa privativa da União Federal (Art. 22, I e XXI) para legislar sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo (reserva de lei). Vejamos:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI 6.968/1996, ALTERADA PELA LEI 7.111/1997, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. AUTORIZAÇÃO DE PORTE DE ARMA PARA AUDITORES FISCAIS DO TESOURO ESTADUAL. PRELIMINARES REJEITADAS. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. Cabe à União, nos termos do art. 21, VI; e 22, I, da Constituição, a definição dos requisitos para a concessão do porte de arma de fogo e dos possíveis titulares de tal direito, inclusive no que se refere a servidores públicos estaduais ou municipais, em prol da uniformidade da regulamentação do tema no país, questão afeta a políticas de segurança pública de âmbito nacional (Precedentes: ADI 2.729, Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de 11/2/2014; ADI 2.035-MC/RJ, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTI, Tribunal Pleno, DJ de 4/8/2000; ADI 3.112, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, DJ de 26/10/2007; AI 189.433-AGR/RJ, Segunda Turma, DJ de 21/11/1997; HC 113.592, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, 2ª Turma, DJ de 3/2/2014). 2. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 4962, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 24-04-2018 PUBLIC 25-04-2018)”
“COMPETÊNCIA NORMATIVA – ESTADO-MEMBRO – REMISSÃO A LEI FEDERAL. A técnica da remissão a lei federal, tomando-se de empréstimo preceitos nela contidos, pressupõe a possibilidade de o estado legislar, de modo originário, sobre a matéria. COMPETÊNCIA NORMATIVA – ARMAS DE FOGO – APREENSÃO E DESTINAÇÃO. Cumpre à União disciplinar, de forma exclusiva, a destinação de armas de fogo apreendidas. Considerações e precedentes. (ADI 3193, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 05-08-2013 PUBLIC 06-08-2013)”
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PENAL E MATERIAL BÉLICO. LEI 1.317/2004 DO ESTADO DE RONDÔNIA. Lei estadual que autoriza a utilização, pelas polícias civil e militar, de armas de fogo apreendidas. A competência exclusiva da União para legislar sobre material bélico, complementada pela competência para autorizar e fiscalizar a produção de material bélico, abrange a disciplina sobre a destinação de armas apreendidas e em situação irregular. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 3258, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 09-09-2005 PP-00033 EMENT VOL-02204-1 PP-00132 RTJ VOL-00195-03 PP-00915 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 69-74 RB v. 18, n. 506, 2006, p. 49)”
Entretanto, adotando-se uma técnica de preservação das normas jurídicas – pouco utilizada nos casos de Decretos do Executivo – poder-se-ia interpretar o texto do Decreto nº 9.685/2019 (Art. 1º) de modo a não excluir totalmente da Autoridade Pública competente, em cada caso, a avaliação do critério subjetivo da “efetiva necessidade”, como requisito para aquisição de arma de fogo pelo cidadão.
Questão curiosa que se põe aqui no Decreto nº 9.685/2019 é que tal espécie normativa regulamentar não pode ser alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade, de acordo com a jurisprudência do Supremo. Mas quando possui natureza de norma primária, extrapolando – sobrepondo-se – aos limites da lei ordinária? Seria o caso de provocar o Superior Tribunal de Justiça em sede de Incidente de Recurso Repetitivo?
Vamos aguardar os novos capítulos dessa discussão.
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Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público no Estado do Espírito Santo